Disciplina - Educação Física

Capoeira – Origem e História


Sergio Luiz de Souza Vieira
Da Capoeira: Como Patrimônio Cultural
PUC/SP – Tese de Doutorado - 2004

A Capoeira, é uma das manifestações culturais mais importantes do Brasil. Surgida do encontro, em terras brasileiras, principalmente das culturas do índio, do negro e do português, tornou-se um dos mais importantes símbolos do Brasil. Trata-se de uma das manifestações culturais da corporeidade humana, a qual é baseada em um diálogo corporal, no qual terá maior destaque o jogador que fizer mais perguntar corporais do que as respostas corporais obtidas, ou então aquele capaz de apresentar mais argumentos corporais do que as perguntas corporais que
lhe foram feitas. Neste diálogo entrarão em jogo os braços, as pernas, a cabeça e os
jeitos corpo.
A primeira citação do vocábulo foi feita pelo Padre Fernão Cardim (SJ)
na obra: Do Clima e da Terra do Brasil1, editado em 1577, onde se destaca o texto:
“Ao lomgo de huma rossa que Frco. Frz., feitor da dita casa tem derrubado, saindo
as capoeiras que foram de Anto. Frz.”. Em outras obras jesuíticas que se
sucederam, novamente o vocábulo capoeira foi registrado, em todos mantendo o
significado de vegetação secundária. Ainda hoje, a discussão sobre o vocábulo
parece ser interminável.
Com o advento das invasões holandesas, na Bahia e em Pernambuco,
no século XVII, principalmente a partir de 1640, houve uma desorganização
generalizada no litoral brasileiro, permitindo que muitos escravos fugissem para o
interior do país, estabelecendo-se em centenas de quilombos, tendo como
conseqüência o contato ora amistoso, ora hostil, entre africanos e indígenas. Tende-
se a acreditar que o vocábulo, de origem indígena Tupi, tenha servido para designar
negros quilombolas como “negros das capoeiras”, posteriormente, como “negros
capoeiras” e finalmente apenas como “capoeiras”. Cabe ressaltar, que nunca houve
nenhum registro da Capoeira em qualquer quilombo. Sendo assim, aquilo que antes
1
Anais da Biblioteca Nacional, Volume LXXXII. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1962, pg. 62.
etimologicamente designava “mato” passou a designar “pessoas” e as atividades
destas pessoas, “capoeiragem”.
Não há, desta forma, nenhuma relação entre o significado deste
vocábulo, na sua acepção original ou a obtida nos movimentos quilombolas, com
sua forma enquanto “Luta”, cuja mais antiga citação nos foi fornecida por Hermeto
Lima, ao nos afirmar que “segundo os melhores cronistas, data a capoeiragem, de
1770, quando para cá andou o Vice-Rei Marques do Lavradio. Dizem eles também
que o primeiro capoeira foi um tenente chamado João Moreira, homem rixento,
motivo porque o povo lhe apelidou de ‘amotinado’. Viam os negros escravos como o
‘amotinado’ se defendia quando era atacado por 4 ou 5 homens, e aprenderam seus
movimentos, aperfeiçoando-os e desdobrando-os em outros dando a cada um o seu
nome próprio. Como não dispunham de armas para sua defesa uma vez atacados
por numeroso grupo defendiam-se por meio da ‘capoeiragem’, não raro deixando
estendidos por uma cabeçada ou uma rasteira, dois ou três de seus perseguidores”2.
Este texto de Hermeto Lima, se alinha com o de Macedo, que nos
afirma que “o Tenente ‘Amotinado’ era de prodigiosa força, de ânimo inflamável, e
talvez o mais antigo capoeira do Rio de Janeiro, jogando perfeitamente, a espada, a
faca, o pau e ainda de preferência, a cabeçada e os golpes com os pés”3.
Com isto, o vocábulo “Capoeira” passou a estar associado a uma forma
de luta, atrelada às estratégias de sobrevivência da população negra, que “resistiu e
cedeu, agrediu e foi agredida”4. Esta situação acabou, de alguma forma, fixando
seus significados em comportamentos considerados ilegais ou criminosos, que
foram rigorosamente punidos pela polícia a cada época. Muitas destas ações
tiveram como pano de fundo a repressão à luta dos escravos pela liberdade e aos
mesmos enquanto grupo, com o aumento gradativo da população de negros libertos
ou alforriados5, quando, principalmente a partir do séc. XIX. Assim, o que antes se
constituía numa ação contrária a um determinado grupo étnico, passou a ser um
combate a um procedimento cultural. A Capoeira, que se disseminava com grande
força, atingia boa parte da população branca, conforme nos indica Soares ao afirmar
2
Lima, Hermeto in “Os Capoeiras”, Revista da Semana 26 no 42, 10 de outubro de 1925.
Macedo, Joaquim Manoel. Memórias da Rua do Ouvidor. Rio de Janeiro: Perseverança, 1878, pg. 99. O texto
em tela se relaciona também com o Tenente João Moréia.
4
Soares, Carlos Eugênio Líbano. A Negregada Instituição – Os Capoeiras no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:
Biblioteca Carioca, 1994, pg. xvii.
3
2
que “inúmeros jovens, mesmo alguns da elite, eram facilmente seduzidos pela
beleza da acrobacia e da agilidade, que hoje faz o sucesso da Capoeira nas
gerações mais novas. A faixa etária daqueles presos como capoeiras, denota a
majoritária presença de jovens entre 15 a 25 anos”6. Desta forma, passou a se
constituir numa prática indesejada e que deveria ser extirpada do seio da sociedade.
Contra estes primeiros capoeiras, entre os quais existiam escravos
fugitivos, negros libertos e elementos marginalizados pela sociedade escravagista,
passaram a existir uma série de leis penais que os consideravam como desordeiros
e delinqüentes, sendo rigorosamente vigiados e punidos. A evolução das leis
acontecia na mesma ordem em que os escravos iam gradativamente obtendo suas
liberdades, através de cartas de alforria ou de compras de suas liberdades, o que
lhes conferia um novo status jurídico.
Conforme nos afirma Rego, “o Brasil, que nasceu sem uma polícia
organizada, começou a pensar nisso a 24 de outubro de 1626, com a primeira idéia
de se organizar, no Rio de Janeiro, uma polícia inspirada nas Ordenações Filipinas,
tendo como patrono o ouvidor-geral do crime Luís Nogueira de Brito. O Trabalho era
gratuito e executado por funcionários chamados ‘quadrilheiros’, devido a atuação ser
feita por quadras, tendo cada qual um responsável. A tarefa era manter a
tranqüilidade da cidade e evitar o vício e a delinqüência. Como esta estivesse
proliferando com o crescimento da cidade, surge em 1725 o governador Luís Vahia
Monteiro, com o ‘punho de ferro’, para impedir o crime e por isso foi apelidado de ‘o
Onça’ devido à semelhança de sua ferocidade com a do animal. Daí a polícia só veio
a sofrer reestruturação e por sinal de base, em 1808”7. Mesmo com esta força
repressora, os métodos da polícia não foram suficientes para repelir as ações dos
capoeiristas, já habitantes do crime, em conseqüência das injustiças sociais que o
sistema originava.
Em 1.808 chega ao Brasil D. João VI e sua corte, fugidos das tropas
napoleônicas que então dominavam a Europa. Temendo ser liquidado por espiões
estrangeiros ou por alguma represália por parte dos escravos ou provocada por
capoeiristas, ou ainda temendo que intrigas feitas por descontentes que o levassem
5
A referência aqui se dá em função de muitos negros que passaram a ser alforriados ou a comprar sua própria
liberdade, o que mudava sua relação jurídica, pois como pessoas livres eram providos de algumas liberdades
individuais, entre elas a de fazer Capoeira como uma atividade esportiva, por exemplo.
6
Soares, op. cit. 1994, pg. 83. O texto se refere aos jovens do Rio de Janeiro.
7
Rego, Waldeloir. Capoeira Angola – Ensaio Sócio-Etnográfico. Salvador: Itapoã, 1968, pg. 293 e 294.
3
a uma situação desfavorável, procurou o imperador dar uma nova estrutura a polícia
aumentando sua segurança e a da Cidade do Rio de Janeiro, na época Capital do
Brasil, o que se deu através do Alvará de 10 de maio de 1.808, criando a
Intendência Geral de Polícia, que foi baseada nos mesmos moldes da organizada
pelo Marques de Pombal em Portugal, sendo nomeado primeiro intendente o
desembargador Paulo Fernandes Viana, que tratou logo de organizar uma secretaria
de polícia, para facilitar a expansão de seu programa de realizações.
Fruto deste trabalho foi criada a Guarda Real de Polícia, que foi
originada pelo Decreto de 13 de maio de 1.809 e cuja direção foi confiada ao Major
Miguel Nunes Vidigal, que se tornou um célebre combatente dos capoeiristas,
causando-lhes um verdadeiro terror, mesmo porque também era uma capoeirista.
Segundo nos afirmam Barreto Filho e Lima “era um homem alto, gordo,
do calibre de um granadeiro, moleirão, de fala abemolada, mas um capoeira
habilidoso, de sangue frio, e de uma agilidade a toda prova, respeitado pelos mais
temíveis capangas de sua época. Jogava maravilhosamente o pau, a faca, o murro e
a navalha, sendo que nos golpes de cabeça e pés, era um todo inexcedível”8. Esta
riquíssima narrativa nos aponta para o fato de que a capoeiragem, já fazia parte da
sociedade branca e era utilizada em iguais condições para reprimir aqueles que não
se enquadravam no modelo social dominante. “Parecia estar em toda parte, com
seus granadeiros, armados de longos chicotes. Protegidos pela distância que
mantinham dos capoeiras, podiam atingi-los a salvo. Chegava, inesperadamente,
aos quilombos, rodas de samba e candomblés, arrebentando tudo e todos que
encontrava. Aos capoeiras, que foram sua mira principal, reservava um tratamento
especial, uma espécie de surras e torturas a que chamava de ‘ceia dos camarões’”9.
Rego ainda nos informa que o mesmo após prestar relevantes serviços policiais para
D. Pedro I e D. Pedro II, veio a falecer a 10 de junho de 1853, galgando o posto de
Marechal de Campo e Cavaleiro da Imperial Ordem do Cruzeiro. Ironicamente,
talvez tenha sido o primeiro capoeirista a obter esta honraria.
Após a criação da Intendência Geral de Polícia, o capoeira nunca mais
teve paz, tendo a partir daquela data inúmeros perseguidores. Todavia a Guarda
Real de Policia, sua componente, apesar do punho forte do Major Vidigal e de outros
8
Barreto Filho, Melo & Lima, Hermeto. História da Polícia do Rio de Janeiro: Aspectos da Cidade e da Vida
Carioca – 1565/1831, vol I. Rio de Janeiro: S/A A Noite, 1939, , pg. 203.
9
Rego, op. cit., 1968, pg. 295.
4
chefes que por lá passaram, não foi suficiente para extinguir os capoeiras e muito
menos o problema dos constantes conflitos entre eles e a polícia, sobretudo no
tangente ao uso de armas características que usavam os capoeiristas da época.
A arma comum dos capoeiras, na época, era a temível navalha, a qual
manejavam com a mais absoluta destreza, e em virtude disto, usavam um lenço de
seda pura em torno do pescoço como precaução para se defenderem, sabido que a
mesma embota o fio da navalha.
Ao longo do Império, houve as seguintes legislações que proibiram a
prática da Capoeira, algumas denominadas de Decisões, as quais se comparam às
atuais Resoluções e as Posturas, que correspondem atualmente às Deliberações, a
saber:
Decisão de 31 de outubro de 1821: determinou sobre a execução de castigos
corporais em praças públicas a todos os negros chamados capoeiras.
Decisão de 05 de novembro de 1.821: determinou providências que deveriam ser
tomadas contra os negros capoeiras na cidade do Rio de Janeiro.
Decisão de 06 de janeiro de 1.822: mandava castigar com açoites os escravos
capoeiras presos em flagrante delito.
Decisão de 28 de maio de 1.824: dava providências sobre os negros
denominados capoeiras.
Decisão de 14 de agosto de 1.824: mandava empregar nas obras do dique os
negros capoeiras presos em desordem, cessando as penas de açoites.
Decisão de 13 de setembro de 1.824: declara que a portaria de número 30 do
mês de agosto compreende somente escravos capoeiras.
Decisão de 09 de outubro de 1.824: declara que os escravos presos por
capoeiras devem sofrer, além da pena de três meses de trabalho, o castigo de
duzentos açoites.
5
Decisão de 27 de julho de 1.831: manda que a junta policial proponha medidas
para a captura e punição dos capoeiras e malfeitores.
Postura de 17 de novembro de 1.832: proibia o Jogo da Capoeira: “...trazem
oculto em um pequeno pau escondido entre a manga da jaqueta ou perna da calça
uma espécie de punhal...” “tomam providências contra todo e qualquer ajuntamento
junto às fontes, onde provocavam arruaças e brigas; próximo a Igreja do Rosário, no
Largo da Misericórdia, onde à noite as mulheres de reuniam...”
Decisão de 17 de abril de 1.834: solicita providências a respeito dos operários do
arsenal de marinha que se tornarem suspeitos de andar armados (fez referência a
uma acusação de assassinato feita contra um negro, e mencionou que já haviam
sido dadas ordens ao chefe de polícia sobre os capoeiras).
Decisão de 17 de abril de 1.834: dá providências a respeito dos pretos que
depois do anoitecer forem encontrados com armas ou em desordens.
Postura de 13 de dezembro de 1.834: dá mais providências contra os capoeiras.
Em 1.830 apareceu a primeira codificação penal brasileira, que
recebeu o nome de Código Criminal do Império do Brasil. Não se referia ao
capoeira, especialmente, mas como socialmente o mesmo era considerado um
vadio, sem profissão definida, implicitamente estava enquadrado no Capítulo IV:
Dos Vadios e Mendigos, e também por andar em grupos, estava sujeito aos tratos
do Capítulo III: Dos Ajuntamentos Ilícitos.
Com a Guerra do Paraguai, o Império viu-se na contingência de formar
batalhões específicos de negros, em sua grande maioria, capoeiristas. Sendo assim,
entre 1865 e 1886, os governos provinciais fizeram seguir para a frente de batalha,
grande número de capoeiristas, em batalhões específicos denominados Zuavos. Se
por um lado o objetivo era reduzir sensivelmente o número de capoeiristas, por outro
conseguiram tornar a modalidade uma Arte Marcial, posto ser este um título que
usualmente é conquistado por alguma forma de luta que tenha passado por uma
experiência de guerra.
6
Não foram em vão os esforços destes brasileiros, no teatro de
operações, posto que, se destacavam, principalmente nos assaltos com baionetas.
Como exemplo destes atos de bravura, é digna de citação a brilhante tomada ao
Forte Curuzó, onde os Zuavos galhardamente fincaram o Pavilhão Nacional, após
terem rechaçado os paraguaios.
Alguns capoeiras chegaram a ser oficiais do Exército e da Marinha, por
seus atos de bravura, e recebendo a comenda da Ordem do Cruzeiro, como foi o
caso do Capitão Cezário Álvaro da Costa do 7o Batalhão de Caçadores. Outro
exemplo também é o do Alferes Francisco de Melo do 9o Batalhão de Caçadores
que com bravura se destacou na Batalha do Riachuelo, juntamente com outros
companheiros, como foi o caso do “Príncipe Oba II, Cândido Fonseca Galvão, um
negro que se tornou Alferes do Batalhão de Zuavos e depois encarnou o papel de
monarca dos negros e negras da Corte, exibindo seus conhecimentos de figuras de
proa da vida do Império, se identificando com o Partido Conservador, e chegando a
desfrutar da amizade do próprio Imperador Pedro II”10.
Em 1.870, após o final da Guerra, o Brasil começou a voltar à
normalidade. “O prestígio alcançado pela força militar diante da sociedade civil era
impensável antes do conflito. Transformados em heróis do dia, os soldados
sobreviventes voltaram para uma sociedade tremendamente mudada”11. Como em
conseqüência de um conflito sempre existe uma mudança no pensamento, esta se
desenvolveu sob a forma do abolicionismo. Não o abolicionismo disfarçado em gesto
humanitário para o povo negro, mas sim como corrente contra a estagnação da
economia brasileira, da sociedade escravagista, que já estava sendo superada por
nações que haviam libertado os seus escravos.
Assim, “a participação de escravos no Exército garantiu, pelo menos, à
parcela da população envolvida, algum tipo de reconhecimento, e mesmo, um lugar
de interlocução. Sua incorporação num projeto de realização hegemônica da Coroa
e da classe dominante implicava necessariamente assimilar alguns de seus próprios
interesses a esse projeto. Assim, é que a alforria do escravo combatente tinha dois
lados: encobrir o fato da civilização escravista fundar parte de sua glória nos campos
de batalha num segmento da população não reconhecendo como portador de seus
10
11
Soares, 1994, op. cit. pg. 190.
Soares, 1994, op. cit. pg. 190.
7
padrões morais e culturais, ao mesmo tempo incorporar e atender um interesse
imediato desses setores, a liberdade”12.
Os abolicionistas passaram a ajudar os negros a encontrarem meios de
conseguir sua liberdade, quer com apoio logístico, quer através de jornais ou ainda
também lutando lado a lado dos mesmos. Há que se esclarecer que embora o tal
movimento tivesse uma intenção também humanitária, houve quem a esta causa se
juntasse buscando atenuar a questão da miscigenação.
A maçonaria que exercia grande influência na Monarquia, passou
também a se empenhar diretamente na causa dos escravos, atuando na elaboração
e promulgação de leis que transformassem gradativamente a economia brasileira, de
escravagista para capitalista. Desta forma, surgiram leis como a do Ventre-Livre em
27 de setembro de 1.871 e a dos Sexagenários em 06 de maio de 1.885.
Estas medidas, apesar de não resolverem o problema social dos
negros serviam para incentivá-los ainda mais em sua luta. E aos poucos foram se
ajuntando em dois grandes grupos denominados por Nagoas13 e Guaiamus14, que
mantinham
entre si uma intransigente rivalidade, ambos se combatendo
mortalmente. Tais agremiações, surgidas na segunda metade do século XIX, e que
se subdividiam por freguesias, eram chamadas de “Maltas de Capoeiras”, causando
verdadeiro terror à população e implacável, perseguição por parte da polícia.
Segundo nos indica Soares, “tais grupos representavam duas tradições oriundas de
uma mesma matriz, que se forjaram na clivagem étnica e cultural que atravessou a
sociedade carioca na metade do século XIX. Os Nagoas seriam identificados com
uma tradição escrava africana da Capoeira, remontando aos primórdios da
sociedade urbana, na virada do século XVIII para o XIX. Os Guaiamus deveriam
estar ligados a uma raiz nativa e mestiça, próxima dos libertos e pardos, que teve
grande projeção a partir dos meados do século XIX, quando homens livres,
imigrantes portugueses, brancos pobres vindos do interior e crioulos chegados de
todas as províncias gradativamente somaram a maioria esmagadora da população
12
Salles, Ricardo. A Guerra do Paraguai: Escravidão e Cidadania na Formação do Exército. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 1990, pg. 74.
13
Nagoas significava gente da nação nagô, escravos originários da África Ocidental e que falavam ou entendiam
o ioruba, ou seja, das regiões do Benim e da Nigéria. Estes representavam cerca de 65% da população escrava.
14
Guaiamus, termo que designa um crustáceo pantanoso, identificava uma parcela que residia próxima à antiga
área pantanosa da Cidade do Rio de Janeiro, que depois, no início do século XX, seria aterrada, pelo Prefeito
Pereira Passos, por conta do Movimento Higienista, desencadeando a chamada Revolta da Vacina Obrigatória.
8
trabalhadora”15. Mais tarde, no final do segundo reinado, estes conflitos se
agravariam tomando partido os Guaiamus, do movimento republicano, e os Nagoas,
por uma defesa da monarquia.
Na medida em que a Capoeira foi sendo incorporada por brancos,
portugueses e mestiços, tais maltas também foram tendo sua composição étnica
alterada, a ponto de se tornarem minorias os africanos, operando assim sinais de
uma transição cultural subterrânea, onde uma geração foi herdando os
ordenamentos simbólicos de outra, incorporando outros simbolismos, sem deixar
vestígios da passagem da geração antiga. À guisa de exemplo podemos citar como
influência portuguesa, a introdução da navalha, os nomes dos golpes utilizados
pelos capoeiras da época, a malandragem dos fadistas, assim como as gírias
usadas na comunicação entre os mesmos, os aspectos religiosos católicos inseridos
nas canções, bem como até a palavra “mestre” que em breve seria incorporada16.
Há que se considerar também, que por trás desta transição cultural, ocorria
alterações nos conteúdos, fundamentos, rituais e tradições da Capoeira,
conseqüentemente em seu patrimônio cultural.
A Capoeira, naquela época, antes de ser uma luta era uma instituição,
conforme nos aponta um texto extraído do Jornal Gazeta de Notícias em 1880, que
sugeria para estas agremiações no nome de “Partido Capoeira”, o qual a partir das
“Maltas”, mercantilizava a violência, a qual era contratada por políticos profissionais
de situação ou de oposição, a primeira, dos Nagoas, ligando-se ao Partido
Conservador e a segunda, dos Guaiamus, ao Partido Liberal. A própria polícia, como
vimos, contratava capoeiras para combater outros capoeiras, de forma que havia,
além de antagonismos, também cumplicidades entre os agentes envolvidos.
Soares nos informa que: “não é (era) um grupo específico, com um
determinado número de membros. Ele (o partido) significa um método, uma forma de
fazer política. Esta forma de fazer política teria duas características básicas: a
primeira ligada ao espaço onde esta atuação teria lugar. Este espaço era a rua, a
praça pública. Esta política na rua estava dirigida, pensamos nós, não somente ao
grupo adversário, que se pretendia coagir, mas ao restante da sociedade. Para essa
havia uma mensagem que se pretendia passar, mensagem esta ligada a formas de
15
Soares, op. cit., 1994, pg. 95.
Se formos observar em profundidade a questão multicultural, atrás desta influência portuguesa está também
uma forte característica árabe, em função dos séculos de dominação moura da península ibérica.
16
9
identidade, e uma presença no contexto político dominante. A política de rua dos
capoeiras era, desta forma, uma leitura e uma prática invertida da política fechada
dos gabinetes. A segunda era a autonomia que o Partido Conservador mantinha
frente às grandes agremiações. Por mais que acentuemos a ligação que unia
capoeiras e políticos, conservadores, temos que ter claro que a reprodução do grupo
e sua existência enquanto fonte de poder não estava nas mãos dos chefes políticos.
Não havia um laço de dependência estrita da malta com seu patrono, como existia
na área rural, A aliança com conservadores era fruto de uma opção por aquele
grupo da elite dominante que mais se aproximava de seus interesses, aliança que
podia ser rompida a qualquer momento. Esta situação ficou clara quando da saída
dos conservadores do governo, e a manutenção dos capoeiras como força política
de primeira linha no tabuleiro da corte”17. Tal fato, a que se refere Soares, se dá na
composição da Guarda Nacional, composta em sua grande parte por capoeiristas
fiéis à monarquia, situação esta que futuramente geraria um dos fatores que
motivaram a Proclamação da República, mais especificamente a “Causa Militar”18, a
qual foi um dos fatores que motivaram com que o Exército Brasileiro intervisse no
problema, destituindo a Monarquia e assumindo o governo.
Encontramos concordância com este posicionamento em Pederneiras,
quando afirma que “a vida quase comum dos politiqueiros, e demagogos, de
antanho e os capoeiras, estabeleceu uma permuta de vocábulos; frases feitas,
chapas parlamentares, eram adotadas ou adaptadas pelos ‘capadócios’; os tropos
da retórica dos pais da pátria transferiam-se para o vocabulário dos pernósticos
guarda-costas. Assim se explica o gênero rebuscado que floresceu na linguagem
dos guaiamus e nagoas; assim se justifica a entrada dos capadócios no campo do
falar comum”19.
Soares ainda nos aponta para o fato de que mesmo durante os
governos liberais, capoeiras e policiais partilhavam de uma estranha parceria, que
provocava verdadeiros escândalos na população de classe média. Assim, “capoeiras
perseguidos por policiais em determinadas freguesias costumavam correr para suas
áreas de origem, de forma a contar com a proteção, às vezes direta, da polícia
17
Soares, op. cit., 1997, pg. 219
Tratou-se de um boato no qual se pretenderia a substituição do Exército pela Guarda Nacional, em represália
ao positivismo que se instalava entre os oficiais do Exército.
19
Pederneiras, Raul. Geringonça Carioca: Verbetes para um Dicionário da Gíria. Rio de Janeiro: Brigiet, 1922,
pg. 3.
18
10
local”. Mas o dado indicativo mais forte dessa ‘simbiose’, era a existência do
chamado ‘Corpo de Secretas’, que era uma espécie de ‘polícia política clandestina’,
que fornecia informações para os escalões mais altos. Diversas vezes os jornais
denunciavam que este corpo era formado exclusivamente por capoeiras recrutados
nas prisões, e que recebiam a liberdade em troca de alguns ‘serviços’ que a polícia
diretamente não poderia realizar”20.
Plácido de Abreu, escritor português, nos dá uma idéia sobre os níveis
de violência alcançados por estas maltas. Ele, que provinha dos Guaiamus,
nos deixou o seguinte texto: “Há pouco tempo o bando Guaiamu costumava ensaiar
os noviços no Morro do Livramento, no lugar denominado Mangueira. Os ensaios
faziam-se regularmente aos domingos de manhã e constavam de exercícios de
cabeça, pé e golpe de navalha e faca. Os capoeiras de mais fama serviam de
instrutores àqueles que começavam. A princípio os golpes eram ensaiados com
armas de madeira e por fim serviam-se dos próprios ferros, acontecendo muitas
vezes ficar ensangüentado o lugar dos exercícios. Os Nagoas faziam os mesmos
ensaios, com a diferença que o lugar escolhido por eles era a Praia do Russel, para
os para os partidos de São José e Lapa, e o Morro do Pinto para o de Santana”21.
A mestiçagem colocava em questão a formação do caráter nacional
brasileiro, a partir de um conjunto de características herdadas principalmente de
duas de suas matrizes étnicas: a africana e a indígena. Desta feita, estes distúrbios
eram utilizados pela imprensa como argumentos para o que se viria a pensar sobre
a formação do povo brasileiro. A miscigenação se constituía num problema grave,
praticamente insolúvel, gerador de um grande pessimismo em relação ao futuro da
nação e do povo.
O problema quase que insolúvel das Maltas agravava ainda mais esta
situação, e a polícia, sobretudo pela influência dos políticos, não conseguia dar
conta deste problema.
O mundo ocidental estava envolto nas fundamentações teóricas sobre
a formação do “Estado Nacional”. Esta discussão permeava o pensamento de
muitos intelectuais na Europa e nas Américas, a exemplo de Vancher Lapounge
sobre a América Latina: “eles chegam ao mundo muito tarde, e a raça em si mesmo
é muito inferior. O México, onde o elemento indígena a absorveu completamente, e o
20
21
Soares, 1994, op. cit. pg. 220.
Abreu, Plácido. Os Capoeiras. Rio de Janeiro. Seraphim, 1886, pg 2.
11
Brasil, imenso estado negro, que retornou à barbárie, são os dois únicos de uma
importância numérica séria”22.
O discurso da homogeneização étnica ecoaria em muitos intelectuais
pertencentes aos setores dominantes. Algo deveria ser feito para alterar os efeitos
deste determinismo biológico, considerado por muitos como altamente desfavorável
para o Brasil. “A raça era uma discussão muito difundida neste recorte histórico.
Todos estavam preocupados com uma raça que desenvolvesse o país e garantisse
a formação de Estado Nacional. A idéia do Estado Nacional defendia uma unidade
de território, etnicidade e língua, que na época eram uns dos principais definidores
da nação e do povo. Sem estes pressupostos, o Brasil não se formaria como
nação”23.
A dimensão social que vinha tomando esta situação foi tamanha, que
muitas cidades, em suas Câmaras, já estavam editando legislações similares, a
exemplo de Araras, em São Paulo, que foi a primeira cidade brasileira a abolir a
escravatura, o que se deu em 08 de abril de 1888. Tais fatos também contribuíram
para que a Princesa Isabel, assinasse, em 13 de maio de 1888, a chamada Lei
Áurea, que libertou todos os escravos no Brasil. Assim, não foram somente as
pressões estrangeiras, sobretudo da Inglaterra, em função de um capitalismo que
surgia, houve também uma questão étnica contrária a miscigenação.
Nos meses que se seguiram à abolição, às vésperas da Proclamação
da República, em todos os comícios do Partido Republicano estavam presentes os
capoeiristas, em verdadeiras guerras campais contra os republicanos. O Movimento
Republicano, de simples ideal, se configurou num forte movimento nacional.
No que tangia aos africanos e seus descendentes, no entanto, havia
um sentimento de gratidão à Monarquia, além do entendimento de que o Movimento
Republicano era gerado e sustentado por aqueles que se beneficiavam com a
escravidão e que passaram a se posicionar contrários a Monarquia.
Ao final do século XIX, em 15 de novembro de 1889, exatamente
dezoito meses após a abolição da escravatura24, tivemos a queda da Monarquia e a
Proclamação da República, e com ela, para surpresa de muitos intelectuais de
vanguarda, a ascensão ao poder, da ala conservadora do Exército brasileiro, que
22
Lapounge, Vacher, apud Góis Júnior, Edivaldo, in Os Higienistas e a Educação Física: A História dos seus
Ideais. Dissertação de Mestrado em Educação Física. Rio de Janeiro: UGF, 2000, pg. 70.
23
Góis Júnior, op. cit., 2000, pg. 71.
12
estabeleceu como prioridade à consolidação do regime, através da manutenção da
ordem, da valorização dos símbolos nacionais e do fortalecimento de um
nacionalismo no país, como fatores preponderantes para se obter um progresso.
Assim, inspirada sob o lema positivista e sob a influência dos astros25, nasceu a
República dos Estados Unidos do Brasil. O povo apenas assistia a tudo.
Aqueles capoeiristas que habitavam o mundo do crime26, ainda que
como estratégia de sobrevivência, continuavam a dar grande trabalho para a Polícia.
A Cidade do Rio de Janeiro, naquela época, era a capital do Brasil, e como tal, um
cartão de visitas, que não poderia se maculado pelo crime e pela delinqüência dos
capoeiristas. Este processo civilizador que se instaurava no país, era na realidade,
um projeto de construção de um país branco, ocidental, cristão, de valores europeus,
e de grande recusa de sua matriz africana, e no que nos é concernente, de
domesticação da Capoeira.
Entraria em cena, um outro capoeirista, chamado Sampaio Ferraz,
nomeado como o primeiro chefe de polícia da novel República, o qual recebeu a
incumbência de eliminar o problema da Capoeira no Rio de Janeiro da parte do
próprio do Chefe do Governo, Marechal Deodoro da Fonseca. Sampaio a princípio
diz tratar-se de um problema difícil, pois havia muitos filhos de famílias distintas e
poderosas que faziam uso da mesma, todavia, Deodoro lhe conferiu garantias
pessoais para agir com “carta branca” no sentido de exterminar os capoeiras. À vista
disto ficou decidido que “todos os capoeiras, sem distinção de classe e posição,
seriam encerrados no xadrez comum da detenção, tratados ai severamente e pouco
a pouco deportados para o presídio de Fernando de Noronha, onde ficariam certo
tempo, empregados em serviços forçados”27.
De posse, então desta missão, Sampaio Ferraz, de imediato deu início
a esta empreitada, contando com o apoio de outros capoeiristas, ente eles Silva
Jardim, Lopes Trovão, Coelho Neto e Plácido de Abreu. Entretanto, conforme havia
previsto, “os mais perigosos chefes de maltas de capoeiragem, eram filhos de
24
A abolição da escravatura se deu através da Lei Áurea em 13 de maio de 1888.
Alusão à inserção do céu estrelado com a configuração da noite da Proclamação da República.
26
Esta afirmação se dá em função de que nem todos os que praticavam a Capoeira se encontravam no mundo do
crime. Havia aqueles que a praticavam como um método ginástico.
27
Abranches, Dunshee de. Actas e Actos do Governo Provisório: Cópias Similares das Reuniões Secretas do
Conselho de Ministros. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1907, pg. 171. Bocaiúva, ao final acabou voltando
atrás em sua decisão de renunciar ao cargo. Juca Reis, teria sido, então, encaminhado ao Presídio de Fernando de
Noronha.
25
13
famílias ilustres e até de titulares, de almirantes e de altos funcionários do Paço”28,
os quais foram igualmente presos,
tal fato acabou gerando a primeira crise do
governo republicano, quando a 12 de abril de 1890, fora preso praticando Capoeira,
José Elysio dos Reis, conhecido por Juca Reis, o filho do Conde de Matosinhos, mas
como a ordem já estava posta, não houve como recuar. Assim, entram os Capoeiras
para a história republicana, numa dupla situação: primeiro por “causarem a menos
de cinco meses, a primeira crise do governo provisório, quase pondo abaixo o
Ministério de Deodoro, ocasião em que pediu renúncia o Ministro das Relações
Exteriores, Quintino Bocaiuva”29, e em segundo, por se tornarem, não sem
assassinatos legalizados e torturas, os primeiros presos políticos da república, sendo
deportados para o Arquipélago de Fernando de Noronha.
No mesmo ano, a prática da Capoeira foi incluída no Código Penal da
República como contravenção, onde permaneceu assim, nos cinqüenta anos
seguintes. Entretanto, aqueles que dela se utilizavam como uma prática esportiva,
estavam ilesos das ações policiais.
O Código Penal da República dos Estados Unidos do Brasil,
instituído pelo Decreto 847 em 11 de outubro de 1.890 e que esteve em vigor até
meados da década de 1.960, deu em seu Capítulo XIII tratamento específico ao
assunto, intitulado: “Dos Vadios30 e Capoeiras”, nos artigos que se seguem:
“Art. 402- Fazer nas ruas e praças públicas exercício de
agilidade
e
destreza
corporal
conhecida
pela
denominação de capoeiragem: andar em carreiras, com
armas
corporal,
ou
instrumentos capazes de produzir lesão
provocando
tumulto
ou
desordens,
ameaçando pessoa certa ou incerta, ou incutindo temor
de algum mal;
Pena-
De prisão celular de dois a seis meses. A
penalidade é do art. 98.
28
Abranches, op. cit. 1907, pg. 171.
Abranches, 1907, pg. 172. Este fato nos narra o quanto a Capoeira era representativa naquela época.
30
Há que se ter cuidado com o vocábulo “vadio”, descrito na legislação, pois é comum aos habitantes do norte
de Portugal trocarem o “v” pelo “b”, posto que se utilizam ainda hoje da palavra “badios” pronunciada por
“vadios” para designarem os negros das ilhas da costa africana. Assim, pode ser que esta legislação não esteja se
referindo àqueles que estavam “ociosos”, mais sim aos “negros africanos” que estavam ociosos e aos capoeiras.
29
14
Parágrafo Único- É considerada circunstância agravante
pertencer o Capoeira a alguma banda ou malta. Aos
chefes se imporá pena em dobro
Art. 403- No caso de reincidência será
aplicada ao
Capoeira, no grau máximo a pena do art. 400.
Parágrafo Único- Se for estrangeiro, será deportado
depois de cumprida a pena.
Art. 404- Se nesses exercícios de capoeiragem perpetrar
homicídio, praticar alguma lesão corporal, ultrajar o pudor
público e particular, perturbar a ordem, a tranqüilidade ou
segurança pública ou for encontrada com armas, incorrerá
cumulativamente nas penas cominadas para tais crimes”.
De 15 de novembro de 1.889 a 13 de janeiro de 1.890 foram presos
pelo menos 110 capoeiras. Este número pode parecer pequeno, no entanto, em
números relativos, se formos comparar o índice demográfico da Cidade do Rio de
Janeiro na época, com o da atualidade, bem como o das capacidades dos presídios,
este número poderia corresponder a milhares de presos, o que implicaria na
construção de vários presídios específicos somente para abrigar os capoeiristas. Isto
nos dá uma idéia do grau de repressão contra a mesma.
Gráfico 1
Brancos
30%
33%
Negros
Outros
37%
15
Segundo Bretas31, os registros da Casa de Detenção do Rio de Janeiro
acusaram a prisão de 110 capoeiras, deste total 32,7% eram brancos, 30% eram
negros, e 37,3% outras etnias. Segundo o nascimento 18,1% eram estrangeiros,
4,5% não identificados e os demais brasileiros. Deste total, todos tinham profissão
definida, com exceção a 02 que não foram qualificados. Outrossim, que suas idades
variavam de 18 anos a 41 anos.
Gráfico 2
5%
Brasileiros
18%
Estrangeiros
77%
Não
Identificados
Segundo o depoimento da historiadora Marieta Borges Lins e Silva,
“muitos deportados para Fernando de Noronha, deram entradas com nomes
trocados propositadamente e jamais conseguiram sair do arquipélago, ou seja, o
capoeirista José dava entrada no presídio, com o nome de João, sendo que ao final
da pena a liberdade viria para o João, e não para o José. Como o João não era
encontrado, consideravam que o mesmo havia morrido durante a fuga, comido pelos
tubarões, e o José, este continuava preso até a morte”32.
No que tange ao problema da miscigenação, a questão se dava não
somente no aspecto biológico, mas também no cultural, na medida em que
determinados hábitos considerados como resultantes da matriz africana eram
repassados para todo a sociedade, e desta forma, igualmente condenáveis,
principalmente porque também atingia os adolescentes.
As discussões sobre a questão étnica e sobre o futuro do Brasil,
continuavam a ocupar lugar central nas discussões dos intelectuais, jornalistas e
31
Bretas, Marcos Luiz. Navalhas e Capoeiras: Uma Outra Queda, in Ciência Hoje. Rio de Janeiro: SBPC, no 59,
pgs. 56 a 64.
16
governantes. “Como o Brasil é condenado pelos estrangeiros à barbárie, o país é
mal visto. Então começamos a exaltar um nacionalismo defensivo em relação aos
europeus. Em vez de aceitarmos as críticas aos brasileiros, por que não criticarmos
a cultura européia, criando uma cultura genuinamente brasileira?”33.
Em posicionamento contrário à postura pessimista em relação ao futuro
do Brasil, mantida por alguns intelectuais da época, dentre eles Euclides da Cunha,
que “classificou a cultura brasileira como sendo de empréstimo”34, apareceram no
cenário nacional os higienistas, um grupo de pensadores que entendiam que se
havia um determinismo biológico negativo em relação à miscigenação, a única saída
para o Brasil seria através da promoção da Educação e da Saúde Pública.
No entender dos higienistas, não havia fundamentação científica para
se determinar o futuro de uma nação simplesmente pelo determinismo biológico,
constituindo isto um grande equívoco. Na realidade as pessoas eram frutos do meio
em que viviam, sendo assim, seria necessária uma intervenção governamental para
que pudéssemos obter uma melhoria das qualidades psíquicas do povo brasileiro.
Desta forma, a corrente higienista ganhou força no seio positivista que
dominava o novel poder republicano. Era necessária uma ação que pudesse,
através da educação fornecer mudanças nas condições do povo, uma vez que as
hereditárias implicavam em desvantagem ante outras nações.
O povo, abandonado, estava entregue às doenças em virtude da
inércia dos governos. Faltavam estudos climáticos e sobre as condições saudáveis
de vida em nosso meio, assim como uma ação capaz de resolver os problemas da
escassez e impropriedade dos alimentos. Necessitávamos de uma política que
alavancasse a economia e que solucionasse os problemas sociais e pedagógicos
relativos à prosperidade e à educação do povo. Buscava-se, então, a intervenção
do Estado, através da garantia dos direitos constitucionais à população brasileira,
estabelecidos a partir da Educação e da Saúde, o que implicou na estruturação de
escolas, na democratização do ensino, na educação para o trabalho35, na Educação
Higiênica e na Educação Física.
32
A Profa. Marieta Borges é hoje a maior especialista na História de Fernando de Noronha.
Góis Júnior, op. cit. 2000, pg. 77.
34
Góis Júnior, op. cit. 2000, pg. 78.
35
Esta educação para o trabalho se fundamenta na constatação destes nacionalistas da chegada da mão de obra
européia para a substituição dos escravos que haviam sido libertados. Entendiam que era necessário o
desenvolvimento da formação de trabalhadores brasileiros. Este discurso também seria reproduzido pela
33
17
Entendiam os higienistas que a Educação Integral englobava os
sentidos: moral, físico, intelectual e era um direito da criança e uma obrigação dos
educadores. Para eles, “a superioridade ethnica de um povo é uma equação entre
os elementos de sua formação e as condições históricas que sobre eles actuaram”36.
A partir da questão da Educação Integral, abriu-se também um espaço
para que os defensores da Educação Física se apropriassem deste discurso.
Na França, do século XIX, o governo tinha a preocupação de que a
população do país viesse a desaparecer gradativamente, mesmo que as teorias de
Malthus37 alardeassem uma explosão demográfica. No que dizia respeito às
atividades corpóreas, para a França, sua população estava fraca, indisposta,
debilitada fisicamente isto poderia comprometer a soberania nacional. Precisaram,
então, desenvolver um método de atividades físicas, fundamentado nas teorias
fisiológicas da época, as quais não aceitavam o valor do desgaste físico, como um
fator propício para a recuperação energética em superioridade, desenvolvendo
assim, uma economia da energia, através do treinamento físico.
Após diversas pesquisas para se chegar a um método ginástico,
estabeleceram-se dois grupos, um que recomendava as práticas esportivas, dos
quais podemos destacar o Barão Pierre de Coubertain38, e outro de Georges
Demeny, que optava pela Ginástica, sendo escolhido tal método que seria
denominado como Ginástica Francesa. Demeny foi também incumbido de criar um
Curso de Educação Física, pioneiro na França, e que foi estabelecido na Escola
Joinville-le-Point.
Destacaram-se, também na Europa, outros pioneiros dos métodos
ginásticos, a saber: D. Francisco Amorós y Ondeano39, Per Henrik Ling40, Johan
Guts Muths41, Geórges Hébert42, Thomas Arnold43 e Robert Baden-Powell44, cujos
esquerda brasileira, na pessoa de Manoel Bonfim. Para ele a raça brasileira era o mestiço, que deveria se libertar
do estado de abandono a que fora submetido pelas elites.
36
Azevedo, Fernando, apud Góis Júnior, op ?. cit., 2000, pg. 97.
37
Economista inglês que demonstrou que em virtude do crescimento vertiginoso do índice de densidade
demográfica, poderia haver fome no mundo, pois a produção de alimentos não acompanhava os mesmos índices.
38
Notável defensor dos esportes que foi o principal protagonista para o estabelecimento dos Jogos Olímpicos da
modernidade.
39
Precursor das idéias da criação da Ginástica Francesa.
40
Precursor da Ginástica Sueca.
41
Consolidou a Ginástica Alemã. Defendia que a educação intelectual sem a corporal era incompleta, devendo a
Educação Física ser um meio educativo para todas as nações.
42
Precursor da Ginástica Natural.
43
Considerado o precursor do Método Ginástico Inglês. Desenvolveu a introdução dos esportes de equipe nas
escolas.
18
modelos de organização esportiva acabaram sendo exportados para todo o mundo,
pois os métodos ginásticos: francês, alemão, sueco e inglês buscavam, em síntese,
o desenvolvimento dos valores morais e da aptidão física através de exercícios e
atividades rítmicas.
Para fins desta explanação, é importante registrar que os objetivos
franceses foram alcançados. O país tornou-se uma das potencias econômicas
mundiais, o povo foi reabilitado, houve um crescimento populacional e a economia
tomou novo impulso com a expansão da indústria. É claro, que esta situação não se
deu somente às custas da Ginástica, havendo outros fatores associados, mas em
função de sua grande contribuição, esta solução chegaria ao Brasil com grande
força, adquirindo o status de solucionador dos problemas nacionais, o que foi aceito
por muitos. Assim, “se percebermos que o discurso intelectual brasileiro passava a
valorizar a população e exigir uma intervenção estatal, que os higienistas viam o
método francês como o mais científico, e as atividades físicas como uma das
prioridades do sistema educacional, podemos afirmar que a Educação Física vivia
um momento favorável para a consolidação da mesma perante a sociedade”45.
Célebres foram os discursos que elogiavam os métodos ginásticos
estrangeiros, que já se manifestavam em suas diferentes formas, registrou-se
porém, na época uma forte tendência em buscar um método brasileiro de ginástica.
Na realidade, há muito se buscava um método nacional.
Esta situação marcou também uma disputa de poder entre os
positivistas e os intelectuais nativistas que representavam a vanguarda entre os
educadores físicos brasileiros. Neste bojo, estariam em disputa três correntes de
pensamentos:
Conservadores - defensores da implantação de um método ginástico
estrangeiro. Entendiam os integrantes deste segmento que deveríamos buscar
ações que melhorassem a imagem do Brasil perante os países europeus, adotando
inclusive suas culturas;
Nacionalistas - defendiam a necessidade do desenvolvimento de um método
científico, eminentemente brasileiro, criado por nossos intelectuais e fisiologistas.
44
45
Criou o escotismo. Defendia a Educação Física e os exercícios como naturais aos homens e mulheres.
Góis Júnior, op. cit. pg. 146.
19
Mantinham um posicionamento estabelecido através de um nacionalismo defensivo
em relação aos europeus, uma vez que já haviam condenado o país à barbárie; e
Vanguardistas - que entendiam que não haveria a necessidade de tal
desenvolvimento, pois já tínhamos a Capoeira, que poderia ser reaproveitada, desde
que estivesse livre de seus atos criminosos e marginais, e transformada em uma
modalidade esportiva, ou seja, em um método ginástico nacional ou em uma
modalidade de luta nacional.
Por força de tal circunstância, a Capoeira acabou sendo submetida a
um processo de esportivização, advindo de influencias da Europa do século XIX,
que atuaram tanto sobre a Educação quanto sobre a Educação Física e que a ela
estabeleceram procedimentos ginásticos de melhoria da performance física e do
desenvolvimento moral46. A esta nova forma que se configuraria a Capoeira, tomaria
expressão também, influências da Inglaterra, cujo modelo de organização desportiva
tinha dois alicerces de sustentação, a saber: o “associativismo”47 e o “fair play”48, os
quais foram adotados em praticamente todos os países do mundo49.
Esta conjuntura iniciará um novo Capítulo na História da Capoeira,
além de marcar sua passagem para o Século XX. Na realidade o que se presenciou
a partir de então, foi sua adequação ao processo civilizador50, quer pela mudança
46
Os principais textos desportivos da Capoeira até 1928 vinham carregados de uma forte componente de
Educação Moral e de desenvolvimento de procedimentos éticos.
47
O associativismo se tornou uma forma de organização geradora dos c das formas pelas quais
48
O fair play engloba o conceito de jogo limpo, jogo honrado e cordial.
49
Novamente aqui se observa que a Capoeira é um produto multicultural.
50
Este processo também deve ser entendido como um processo civilizador, na medida em que gerou a mudança
de comportamentos. O processo civilizador a que nos referimos não é específico da Capoeira. Entendemos que a
mesma foi submetida a um conjunto mais amplo de ações civilizatórias que exerceram forte influência sobre a
sociedade como um todo, conseqüentemente sobre a mesma. E que se continua até os nossos dias. Estamos nos
referindo aqui, ao esforço contínuo da humanidade em ter “cuidado”, ou seja, de buscar a transição das atitudes
cruentas para as atitudes polidas, da perda da grosseria para o regramento desportivo, na busca da excitação sem
haver o sacrifício do atleta, aqui entendido como o capoeirista. Esta situação nos fica evidente, na medida em
foram extintas as maltas de Capoeira e seus comportamentos violentos, por foca das ações do Estado, assim
como pelos anseios da sociedade, evidenciadas em sua dinâmica legislativa. Buscamos nesta tese, identificar,
aquilo que Norbert Elias chamou de “processo civilizador” e o que Darcy Ribeiro chamou de “processo
civilizatório”. Em ambos encontraremos estas mudanças de hábitos. No primeiro sendo utilizado tal conceito a
partir da historiografia, observando-se mudanças ao longo do tempo, integrando a teoria social e a psicanálise, e
o segundo pela ênfase na adoção de tecnologias oriundas dos povos europeus por parte dos povos da América, ao
que chamará de “incorporação” ou “atualização histórica”, mais precisamente, de “sociedade reitora e sociedade
periférica, sujeita à ação reflexa”.
50
Os principais textos desportivos da Capoeira até 1928 vinham carregados de um forte componente de
Educação Moral e de desenvolvimento de procedimentos éticos.
20
dos comportamentos, quer na adoção de novas tecnologias, situação esta a que se
submetia toda a sociedade brasileira.
A busca de uma prática esportiva ou de uma Ginástica Brasileira teve
um marco na Assembléia Constituinte instalada logo após a Independência do
Brasil, em cuja sessão de 04 de junho de 1823, o Deputado pela Província de Minas
Gerais, Padre Belchior Pinheiro de Oliveira, em nome da Comissão de Instrução
Pública, apresentou um projeto de estimulo aos gênios brasileiros para elaborarem
um tratado completo de educação, o qual recebeu do Deputado pela Província do
Ceará José Mariano de Albuquerque Cavalcante, a seguinte emenda:
“Art. 1- A pessoa que apresentar no prazo de um ano
contado da promulgação deste projeto, um plano de
Educação Física, Moral e Intelectual, se for cidadão
brasileiro será declarado benemérito da Pátria, e como tal
atendido aos postos e empregos nacionais, segundo a
sua classe e profissão; se for estrangeiro ou cidadão do
Brasil, dar-se-lhe-á uma medalha distintiva.
Art. 2- Criar-se-á um segundo prêmio pecuniário para
aquele que apresente um plano de Educação somente
Física ou Moral ou Intelectual”51.
Todavia, havendo o referido projeto recebido um grande número de
emendas, ficou deliberado que o mesmo voltasse à referida comissão para receber
nova redação, o que aconteceu, embora nunca mais retornasse ao plenário. No
entanto, permaneceu a idéia de uma Educação Física Nacional, cujos debates se
seguiriam nos anos futuros.
Embora as influencias estrangeiras relativas aos esportes e ginásticas
fossem fortes e contássemos também com aqueles que buscavam desenvolver
cientificamente um método ginástico nacional, surgiram, no final do século XIX,
intelectuais de vanguarda, que passaram a publicar artigos e crônicas, defendendo a
idéia de que a Capoeira já preenchia estes requisitos, por ser a “luta nacional”52,
podendo ser transformada numa salutar prática esportiva, tal como outros povos
51
52
Dados obtidos em pesquisa junto à Câmara dos Deputados – Brasília - DF.
Passa a confundir-se o conceito de ginástica com o conceito de esporte.
21
tinham suas lutas, tais como o Japão o Jiu-Jítsu, a Inglaterra o Boxe, a França o
Savate, entre outras, mas “para isto era necessário apagar seu passado de crimes e
de violência, eliminar a navalha do seu meio, e prestigiar os ases em detrimento do
‘povo baixo“53. Destacam-se neste cenário Machado de Assis, Plácido de Abreu,
Silvio Romero, Aloísio de Azevedo, Mello Moraes Filho, Luís Edmundo, Manoel
Antonio de Almeida, Lima Barreto, Silva Jardim, Lopes Trovão e Coelho Neto.
O pensamento da maioria destes intelectuais era reformador liberal.
Entendiam que a homogeneização étnica54 e as condições do meio eram fatores
chaves para o sucesso de uma grande nação e que era necessário que
descobríssemos os nosso valores. O próprio Silvio Romero desafiaria em 1879 os
brasileiros a ”estudarem sua verdadeira cultura e não a criação artificial dos
indianistas românticos”55, que haviam construído uma idéia artificial da cultura
brasileira. Segundo ele, “Nessa obra da civilização, não há privilégios de raças e
continentes; há somente o privilégio da força criadora”56.
De fato, Silvio Romero acertaria profeticamente, alguns anos mais
tarde, no que diz respeito a Capoeira, ao demonstrar sua vocação nacionalista: “O
povo brasileiro, como hoje se nos apresenta, se não constitui uma só raça compacta
e distinta, tem elementos para acentuar-se com força e tomar um ascendente
original nos tempos futuros. Talvez tenhamos ainda de representar na América um
grande destino histórico-cultural”57.
Estas palavras, que influenciavam inúmeros jovens intelectuais da
época,
demonstram
claramente,
que
havia
um
posicionamento
para
o
reaproveitamento dos valores brasileiros, à revelia de métodos ou técnicas advindas
de outras nações. Este posicionamento também se fazia sentir em relação à
Capoeira, que no entender dos mesmos poderia ser civilizada e reaproveitada como
um “Método Ginástico Nacional”, ou como uma “Luta Brasileira”.
O empenho de tais personalidades em reaproveitar a Capoeira foi tão
intenso que alguns capoeiristas que acreditavam neste ideal enfrentaram
pessoalmente os próprios capoeiristas que faziam uso desta luta para uso de
atitudes criminosas. “Como militante republicano da ala jacobina, junto com Sampaio
53
Soares, op. cit. 1994, pg 12.
Esta homogeneização já vinha sendo praticada pelos portugueses desde a colônia, constituindo filhos com
africanos e indígenas.
55
Skidmore, Thomas E.. Preto no Branco. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976, pg. 52.
56
Romero, Silvio, apud Skidmore, op. cit., 1976, pg. 52.
54
22
Ferraz, Silva Jardim e Lopes Trovão, Plácido de Abreu ficou várias vezes frente a
frente com a força política das maltas de capoeiras e teve que enfrentar os
‘navalhistas’ aliados do Partido Conservador em diversos momentos”58.
Tais autores posicionavam-se como valorizadores da miscigenada
cultura nacional, porém entendiam que a Capoeira deveria ser saneada e
reaproveitada culturalmente como uma prática desportiva institucionalizada. Isto é,
liberta dos atos criminosos gerados pelas maltas ou indivíduos que a utilizavam para
a prática de atos considerados ilegais, ou seja um Esporte Nacional para um Estado
Nacional. Em outras palavras, uma capoeira civilizada a partir de sua matriz étnica
européia, capaz de causar “alterações nos sistemas adaptativo, associativo e
ideológico decorrentes do impacto das revoluções tecnológicas sobre as
sociedades, estruturando-se em sucessivas formações sócioculturais”59, da mesma
forma que as Ginásticas Nacionais surgidas na Europa. Coelho Neto vai ainda mais
longe: “ele celebra a Capoeira como a verdadeira Educação Física do Brasil, que
deve ser ensinada nas escolas, quartéis, lares, em quaisquer lugares onde a
instrução seja importante”60.
Plácido de Abreu, comediógrafo e jornalista, exímio capoeirista,
português de nascimento, publica em 1886, o romance “Os Capoeiras”, que se
tornou um marco literário na modalidade. Sua crônica narra uma Capoeira que era
temida como arma de rua, não só dos negros, mas também dos pobres urbanos. Em
seu texto encontramos a seguinte citação: “Quando iniciei este livro tive por fim
descrever as atrocidades cometidas pelos capoeiras desde épocas remotas... É um
trabalho difícil estudar a capoeiragem desde a primitiva, porque não é bem
conhecida sua origem. Uns atribuem aos pretos africanos, o que julgo um erro, pelo
simples fato que na África não é conhecida nossa capoeiragem e sim algumas
sortes de cabeça. Aos nossos índios também não se pode atribuir porque apesar de
possuírem a ligeireza que caracteriza os capoeiras, contudo não conhecem os meios
que estes empregam para o ataque e a defesa. O mais racional é que a
capoeiragem criou-se, desenvolveu-se e aperfeiçoou-se entre nós61”.
57
Ibidem pg. 53.
Soares, op. cit., 1994, pg. 43. Observe-se que Sampaio Ferraz, foi o primeiro chefe de polícia da república e
responsável pela perseguição contra aqueles que utilizavam a Capoeira para atos criminais.
59
Ribeiro, Darcy. O Processo Civilizatório: Etapas na Evolução Sociocultural. São Paulo: Cia das Letras, 1998,
pg. 68.
60
Soares, op. cit., 1994, pg. 12.
61
Abreu, op. cit. 1886, pg. 2.
58
23
Não obstante ter sido Plácido de Abreu o primeiro autor a descrever em
detalhes a Capoeira, e também nesta condição, a concluir sobre sua origem
brasileira, a idéia de seu aproveitamento enquanto “Luta Nacional” foi proposta por
Alexandre Mello Moraes Filho: “Como a Febre Amarela, que não sabemos por que
espanta tanta gente e quer-se a todo transe debelar, a capoeiragem, que é uma luta
nacional degenerando em assassinatos, tem merecido perseguição sem descanso,
guerra sem condições. Entretanto, na Europa o tifo, a difteria, o cólera e mais
epidemias produzem anualmente grandes destroços e a ciência não cogitou nunca
do seu extermínio, mas preveni-las; os jogos de destreza e força são regulados em
seu exercício, disciplinados pela arte, e não havendo quem se oponha senão aos
abusos62”.
Esta colocação será preponderante nos novos destinos da Capoeira,
enquanto
prática
desarmamento
e
desportiva,
pois era meta
governamental,
desmantelamento das chamadas
maltas
de
investir
no
capoeiras,
higienizando-a e tornando-a uma modalidade esportiva ou utilizando-se de outras
práticas esportivas para reduzir os níveis de violência urbana então atingidos, posto
que havia um claro entendimento de que: “os ciclos de violência são configurações
formadas por dois ou mais grupos, processos de sujeições recíprocas que situam
estes grupos numa posição de medo e de desconfiança mútua, passando cada um a
assumir como coisa natural o fato de seus membros estarem armados ou serem
mortos pelo outro grupo caso este tenha a oportunidade e os meios para faze-lo”63.
Muitos dos intelectuais, inclusive os já citados fizeram da Capoeira um
tema para suas penas, como Machado de Assis64, Silvio Romero65 e Aluísio de
62
Moraes Filho, Alexandre Mello. Festas e Tradições Populares no Brasil. Rio de Janeiro, Technoprint, s.d..
Nesta obra Moraes Filho faz uma analogia ao Movimento Higienista, do pós República, que com a criação da
Inspetoria de Higiene, iniciou um combate sem tréguas aos cortiços do Rio de Janeiro, sob a desculpa do
combate à Febre Amarela. Ocorre que tais locais eram redutos de negros escravos, libertos e livres, aos quais a
natureza havia dotado de condições naturais de proteção contra esta doença. No entanto eram os principais alvos
da ação das autoridades, que sob a égide da cientificidade, desalojaram milhares de famílias. Na realidade
bastavam outras alternativas preventivas e sanitárias para que esta situação fosse contida. Desta forma Morais
Filho vem afirmar que a marginalidade da Capoeira advinha de falta de condições sociais preventivas desta
violência urbana, que essencialmente não era causada pelos capoeiristas, mas sim, que estes faziam uso de tal
arma corporal para combater outras doenças sociais. Sendo assim, bastava absorver a Capoeira o que melhor
tinha a utiliza-la como um sofisticado instrumento de destreza corporal, uma ‘luta nacional’ou uma ‘ginástica
nacional’.
63
Elias, Norbert & Dunning, Eric. Deporte y Ocio en el Proceso de la Civilización. Cidade do México, Fondo de
Cultura, 1995, pg 39. Texto traduzido.
64
Assis, Machado de. Crônicas: 1878-1888. Rio de Janeiro, W.M. Jackson, 1944. p. 227-30
65
Romero, Silvio. A Poesia Popular no Brasil. Revista Brasileira, 1, Rio de Janeiro, 1879, pg 273.
24
Azevedo, com a primeira edição de “O Cortiço”66, onde aparece o personagem
Firmo, um mulato capoeira. Todos elegem suas obras buscando propiciar à
Capoeira uma atmosfera romântica e de reaproveitamento social no campo
esportivo, tal que desta forma, “atuando através da subjugação, da deculturação, e
da traumatização cultural das etnias dominadas assimilam-nas como parcelas
indiferenciadas de macroetnias imperiais ou as reativam para amadurecerem como
entidades étnicas aspirantes à autonomia e à expansão”67. Sendo assim, para o
Recomendar esta página via e-mail: